Ao longo dos últimos anos da minha vida, tenho dedicado algum tempo a cultivar a história do meu clube, Sporting Clube de Braga, colectividade nascida anos antes da sua data oficial de fundação. E por isso me orgulho de ter feito parte de um grupo de pessoas que arregaçou as mangas para homenagear os Heróis da conquista da Taça de Portugal, no dia 22 de Maio de 1966.
Embora conscientes das limitações de meios de que dispúnhamos, nem por isso desanimamos e, pedra sobre pedra, construímos o castelo. Durante uma semana esteve patente uma exposição comemorativa no Edifício do Turismo, em pleno coração da cidade, para que nenhum bracarense tivesse desculpa para não ir visitar. Segundo fontes oficiais, esta foi a exposição mais visitada de quantas se realizaram no local.
No dia da inauguração estiveram presentes alguns dos Heróis vivos e os familiares de alguns dos que já partiram. Porque nenhum, nenhum dos Heróis foi esquecido. Guardo na memória os abraços entre os antigos colegas de equipa aquando do reencontro ao fim de todos estes anos. E que dizer do orgulho estampado no rosto dos familiares dos Heróis falecidos, enorme!
Mas neste capítulo, há uma imagem que me marcou mais do que as outras. O filho do treinador Manuel Palmeira, a olhar o rosto do pai, quando finalmente se fez justiça à sua memória. Porque ao longo de muitos anos, no memorial do clube não constava o nome do treinador vencedor. Mas agora sim, a verdade foi reposta. No dia 22 de Maio de 1966, o treinador principal da equipa era Manuel Palmeira, tendo ao seu lado numa função de grande relevo, enquanto treinador-adjunto, Rui Sim-Sim, jogador cujo infortúnio das lesões o impediu de entrar em campo.
Esta época desportiva marcou o meu regresso às lides da rádio, no comentário futebolístico, atividade que muito me apraz realizar. Mas antes mesmo disso já tinha colaborado numa outra emissão radiofónica, no dia 31 de Maio de 2015 que todos os adeptos arsenalistas querem esquecer. Naquele regresso penoso a Braga, uma pequena luz brilhava na noite escura, o sonho de regressar ao Jamor no ano seguinte… para vencer.
Acompanhei a caminhada dos Guerreiros do Minho na edição 2015/2016 da Taça, que começou no Fontelo, na visita ao Académico de Viseu, jogado num dia chuvoso de Outono. Virou depois a Sul, ao Algarve, onde com muito esforço lá conseguiram ultrapassar o Farense num campo pelado com alguns pedaços de relva. Depois veio o momento épico, com a recepção ao vencedor em título e carrasco na final da edição anterior. Perante um Sporting fortíssimo, os Guerreiros superaram-se e venceram por 4-3 no prolongamento, naquele que foi, provavelmente, o melhor jogo de toda a época em Portugal. No dia seguinte, o presidente Ricardo Rio anunciava a reserva dos autocarros para o Jamor, mas ainda foi preciso energia e suor para ultrapassar mais dois adversários de valia: o sensacional europeu Arouca nos quartos-de-final e depois o Rio Ave, reeditando-se as meias-finais das últimas duas épocas.
Chegados ao Jamor, o momento era perfeito. Jogar a final no mesmo dia 22 de Maio, tal como há cinquenta anos. Ainda para mais, tendo na tribuna de honra um Presidente da República, adepto confesso do clube, com a incumbência de entregar o troféu.
Pela frente estaria um adversário mais forte, apesar da época menos conseguida, que já “roubara” a Taça ao Braga em 1977 e 1998, para além de uma Liga Europa em 2011. Mas curiosamente, a última disputada entre os emblemas, em 2013 na final de Taça da Liga em Coimbra, sorrira aos bracarenses. E por isso a ilusão dos adeptos era muita, apesar de um final de campeonato algo sofrível, contrastando com uma época, quase toda ela de sucesso a nível nacional e internacional.
Os bracarenses compareceram em peso no Estádio de Honra do Complexo Desportivo do Jamor. Foram mais do que na época passada. E mais uma vez, o jogo começou a correr bem. O Braga marcou primeiro, por Rui Fonte, a aproveitar um falhanço do defesa e guarda-redes do Porto. Na segunda parte, nova fífia da defesa portista e Josué a aparecer a marcar à sua equipa de origem. Estava tudo bem encaminhado, parecia, mas veio a provar-se o quão perigosa é uma vantagem de 2-0.
O Porto reduziu logo a seguir por intermédio de um jovem talento da sua formação, que havia também de ficar na história deste jogo. Adivinhava-se uma meia hora de sofrimento até final. Mas apesar de uma ou outra aflição, os rapazes de vermelho e branco aguentavam-se e os minutos lá foram passando. Embora os fantasmas da época anterior pudessem pairar, lá no fundo havia a confiança de que tudo iria acabar em bem.
Subitamente, o sonho transformou-se em pesadelo, ao minuto 90. A história a repetir-se, não a de 66, mas a da época passada. O mesmo miúdo, num pontapé acrobático, empatou o jogo e colocou em delírio a falange do Dragão. Na curva oposta, a enorme mancha vermelha empalidecia.
O que aconteceu daqui em diante, já não serei capaz de o narrar com a objectividade e distanciamento de um repórter. Tal como já não fui capaz, na emissão de rádio, de expressar com assertividade o meu comentário, de desempenhar correctamente as funções jornalísticas, de informar. Por isso peço desculpa aos ouvintes da Rádio Barcelos.
Em seguida, tento apresentar o testemunho daquilo que vivi, um turbilhão de emoções que não fui capaz de conter.
***
O árbitro terminou o jogo pouco tempo depois do golo do empate.
Um misto de raiva e angústia apoderou-se de mim, todas as esperanças se esvaíram, como se a dimensão dos meus sonhos fosse um imenso lago, de onde alguém retirou a tampa do fundo.
Sentia-me perdido, queria fugir dali, mas sabia que não podia porque havia uma emissão de rádio a fazer e jamais poderia abandonar os meus companheiros de relato. Tinha de estar ali até ao fim, como na época passada, teria de sofrer e tive medo de perder a Taça outra vez.
Trouxe comigo de Braga uma tabuleta com o rosto dos Heróis de 66, estive sempre com ela perto de mim durante todo o jogo.
Então olhei para esta e vislumbrei um rosto sereno, do Mister Palmeira. Do seu semblante paternal transparecia uma paz e uma calma imensa. O barulho no estádio era ensurdecedor. Na altura não me apercebi, Mister, que falava para mim, baixinho como era seu timbre:
“Isto ainda não acabou, rapaz, e tu estás-te a preocupar à toa. Porque não confias em nós?”
Ao lado do Mister estava o Sim-Sim, a olhar para mim com aquele sorriso de playboy. Várias vezes olhei para ti no meio da aflição do tempo extra. E tu com essa expressão de sacana, Sissas. Só agora percebo que tinhas alguma preparada, sabias bem o que se iria passar a seguir. E por isso te rias da minha cara, que estava pálida como cal.
A bola rolava no prolongamento e a nossa equipa era encostada às cordas, estávamos às portas do inferno. O rapaz diabólico ia isolado, para desferir a estocada mortal nos nossos sonhos. Subitamente, olho de novo a tabuleta e reparo no Juvenal, estava virado para a aquela mesma baliza maldita, onde capitulamos na época passada. Foste tu, Juvenal, que fizeste uma das tuas “maldades” ao puto. Ele depois atrapalhou-se e não conseguiu marcar o golo que seria a nossa sentença de morte.
Depois veio a roleta das grandes penalidades, o filme da época passada repetia-se. Ou não? Novo esgar de olho à tabuleta e vejo o Adão compenetrado, a mirar a baliza, para onde há cinquenta anos todos os sonhos confluíram. E tu sussurravas, Adão, para o Marafona, quando o mexicano feio ia bater a bola: “Para esquerda rapaz!”; e o caxineiro lançou-se e parou o remate. Depois veio o uruguaio da verruga, e tu, Adão, disseste-lhe assim: “Agora à direita, pá, atira-te!”; e ele defendeu.
Nesse preciso momento o tempo parou… Uma nova tempestade de sensações nunca dantes experimentadas, um transe, perdi a visão por um momento. Mas, depois a bruma desvaneceu-se. Vi surgir a figura do Luciano, com a Taça na mão e um olhar celestial. Dizia-me assim: “Já não foge, tenho-a aqui comigo. Olha para ela, é Nossa!”
Então olhei de novo para o relvado quando o franzino Marcelo ajeitava a bola e se preparava para iniciar a derradeira corrida, com todo o peso dos nossos sonhos em suas costas. Ouvia os brados imensos do meu colega Paulo, que estava ao meu lado, mas eu escutava-o como se estivesse distante:
“ACREDITA GOIANO, ACREDITA GOIANO!”
E o oitenta e sete corria, transportando todos os nossos sonhos, imparável, bateu a bola…
"GOOOOOOLO!... "
***
O que senti a seguir? Não me peçam para escrever, porque não consigo expressar, reduzir ao papel toda aquela felicidade, aquele momento único, o livro da história a ser escrito a letras de ouro. Tudo ali, à minha frente, não parecia real, mas era.
***
O Braga é mais do que um clube para mim, é uma vida repleta de emoções. Comecei a ir à bola tinha 4 anos, a idade do meu filho. Ia com os meus pais ao velhinho 1.º de Maio, volta e meia pedia para me comprarem uma bandeirinha. Quando o Braga vencia vibrava, quando perdia, às vezes chorava. Os meus amigos de rua eram do Benfica, Porto, um ou outro do Sporting. Alguns gozavam-me por ser do Braga, só do Braga. Porque o Braga não ganhava títulos, porque nem sequer ia uma vez à Europa e qualquer dia descia de divisão. Diziam-me para mudar de clube, mas eu não mudava.
E hoje, passados trinta anos, os mesmos protagonistas passam por mim na rua, um após o outro, e perguntam efusivamente: “E o nosso Braga?”. Eu viro-me e num impulso apetece-me retorquir: “E se te fosses f…?!”. Mas depois faço um compasso de espera e penso: “afinal quem mudou foste tu...melhor assim.” E respondo em tom afectuoso e vibrante: “É o maior, pá!”
Vieram os anos bons, os sucessos, as vitórias, a Pedreira Mágica. Entretanto, surgiu a oportunidade de viver ainda mais intensamente este clube, aos microfones da rádio. Tentando sempre fazer o melhor, o fundamental, ser os olhos e os ouvidos no estádio daqueles que estão com a orelha colada ao receptor. A missão de informar, de comentar as incidências do jogo, é impossível dissociar das emoções do adepto. Mas por isso é que estou numa rádio local, que acompanha o Braga. Para nós, o Braga é actor principal e nunca tem o papel secundário.
Ser adepto de um clube como o Braga não é ser adepto de títulos. É identificarmos-nos a nós mesmos com algo que é nosso, da nossa gente, parte da nossa alma colectiva. E por isso esta Taça é isto, a soma de todos os nossos sonhos, é especial, é um momento único. É Nossa!
Em 1966 ainda não era nascido e estava longe de o ser. Cultivo a memória desses Heróis com muito orgulho. Vejo-os hoje, alguns deles podiam ser meus avós, mas deles transborda a mesma garra, a mesma determinação, a mesma vontade e a mesma crença.
O que mais guardo do convívio com eles é o desapego à vaidade, à soberba. Um deles, o Zé Maria, quando lhe perguntei se não se importava de ter os de agora a fazerem-lhes sombra na galeria de honra e na história, ele de pronto ripostou: “Eu só não quero é morrer sem ver o Braga a ganhar outra vez!”
Cinquenta anos depois, no mesmo dia, na mesma baliza, todos os sonhos do mundo…. Merecêmo-la, bracarenses, esta Taça. Vamos juntá-la à outra, que é exactamente igual a esta, apenas mais velha. Tanto uma como a outra, só foi possível conquistar graças à união, à crença e à superação. Os Heróis de agora são diferentes dos de 66. Têm carros topo de gama, tatuagens, vestem roupas de marca e não largam os smartphones, mesmo quando estão em cima do autocarro panorâmico a percorrer as ruas da cidade, ou no palco em frente à Câmara, junto do povo em euforia a celebrar.
Mas apesar de todas as diferenças, os campeões de agora e os campeões de outrora são iguais na dimensão heróica do feito alcançado, são iguais no orgulho e na admiração que as gentes de Braga sentem por eles. Porque tal como em 1966, esta Taça não é só deles, não é só do Braga. Esta Taça é de Braga, esta Taça é Nossa!
Antes de terminar, deixo-vos o testemunho de dois amigos da rádio, que também viveram um dia como este, no mesmo local, em momentos diferentes.
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Ontem, no Estádio Nacional do Jamor, vivi mais uma grande experiência radiofónica e guardei mais um bom punhado de memórias que, seguramente tão cedo, para não dizer nunca, me irei esquecer.
Assisti, ao vivo, em zona privilegiada, à festa que os adeptos minhotos fizeram em comunhão com a sua equipa após a conquista de mais uma Taça de Portugal, a segunda na história do clube minhoto, após exactamente 50 anos desde a primeira conquista (22/05/1966 e 22/05/2016), depois de mais um jogo de nervos e a pairar no ar o sucedido na época anterior. Por tudo isto, queria destacar a enorme emoção que dois bons amigos, Paulo Martins e Ricardo Jorge, que partilharam a emissão de ontem comigo, depois da angústia vivida na época passada, sentiram quando Marafona defendeu os remates de Herrera e Máxi Pereira e Pedro Santos, Stojilikovic e Hassan, um após outro, iam marcando os seus, até ao momento em que Marcelo Goiano, fez a enorme mancha vermelha, que cobria o topo Sul, explodir.
Nestes últimos tempos tenho aprendido com eles o que é o sentimento braguista, eles, encarnam e são o espelho daquilo que muito milhares de sócios e adeptos sentem e por isso, ontem, mais do que tudo, fiquei muito contente por eles, porque ainda recordo, quando na época passada abandonávamos o Jamor, o semblante escuro e carregado que transportaram até Braga, numa penosa e longa viagem de regresso. Ontem tudo foi diferente e os festejos que se vêm neste vídeo são tão genuínos e intensos que por momentos, e como muito bem diz o Ricardo Jorge, a irracionalidade toma de tal forma conta de nós, que tudo à nossa volta, parece nem existir. O futebol é isto. É paixão! É emoção! É alegria! E é assim que tem e deve ser vivido!
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Independentemente das rivalidades, do que nos separa, do que nos divide, gosto de ver quem merece festejar e viver um dia que, por força também da experiência de 2013, sei ser único. Único como momento radiofónico mas, acima de tudo, único porque vivido como adeptos. E essa vasta equipa mereceu certamente o momento, o dia e a memória que perdurará.
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Nota final:
Uma última palavra para a família e para a memória do Sr. Manuel Dias Braga, que perdeu a vida no regresso do Jamor, às portas da sua cidade, quando esta estava em polvorosa a celebrar a conquista da Taça. Foi com grande consternação que tivemos conhecimento da notícia fatídica, ainda na viagem de regresso. As minhas condolências à família, a quem restará esse pequeno consolo de saber, ao menos, que o seu ente querido viveu um momento de grande felicidade pouco antes de partir. Paz à sua alma.
Ricardo Jorge
Texto redigido de acordo com as normas do antigo Acordo Ortográfico (Decreto lei 35.228/45)